Revogação da medida protetiva por não incidência da Lei Maria da Penha

É bastante comum que processos criminais sob o manto da lei n. 11.340/06 – Lei Maria da Penha – se iniciem a partir do pedido de medida protetiva de urgência (art. 18), deferida se existentes os requisitos legais para incidência daquela legislação mais que especial (art. 5º).
Na finalidade de tolher com maior rigor eventuais práticas criminosas contra as mulheres, o legislador criou o delito de descumprimento de medida protetiva, delineado no art. 24-A: “Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.”
Tem-se que, configurado o descumprimento, cabe ao promotor oferecer a respectiva denúncia, como normal seguimento dos atos.
Mas, e se no momento da análise do inquérito relatado, o representante do Parquet não reconhecer presentes os requisitos da Lei Maria da Penha e por essa causa requerer a revogação das medidas protetivas – e o juiz as revogar – o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência ainda continuará configurado ou não estará presente por atipicidade?
Em primeiro lugar, é importante lembrar que qualquer medida de caráter cautelar/liminar, sobretudo aquela concedida inaudita altera pars, rege-se pela cláusula rebus sic stantibus[1]. Assim, é plenamente possível a revogação, a qualquer tempo, de medidas protetivas de urgência por se reconhecer, principalmente após a conclusão do inquérito, não estarem presentes os requisitos de aplicação da lei Maria da Penha.
Tendo em conta isto, para responder à pergunta feita acima, veja-se o recorte dogmático a seguir.
O bem jurídico tutelado pelo delito do art. 24-A da Lei n. 11.340/06 “é a Administração da Justiça, em especial o interesse do Estado consubstanciado no cumprimento das medidas protetivas de urgência”[2].
Neste ponto, verifica-se que se o próprio Estado as revoga, porque entende inaplicável a lei de referência típica ao caso, não há se falar em lesão ao bem jurídico tutelado, pois não há como lesar (ou ter lesado) um bem jurídico que não mais existe e não existia de forma legítima anteriormente, apesar de formalmente presente naquele momento.
Quanto aos sujeitos do crime, trata-se de crime próprio, ou seja, “que só pode ser cometido pelo sujeito ativo da violência doméstica e familiar contra a mulher”[3].
Nesta senda, por exemplo, se os requisitos doméstica e familiar forem afastados, estão sendo reconhecidos como inexistentes desde o início e desde sempre e, assim, impossível ter o agente praticado o referido delito, já que não é sujeito ativo do crime previsto e criado especificamente para a Lei Maria da Penha.
Quanto ao objeto material, é ele “a decisão judicial que defere uma medida protetiva de urgência prevista na Lei Maria da Penha”[4].
Ora, se a decisão a que o agente devia inicialmente obediência foi revogada, o objeto material do delito sequer existe e não comporta tentativa de ressuscitação por parte do intérprete, que não terá no plexo de elementos típicos aquele pelo qual deve orientar a valoração da conduta do sujeito ativo (estará em falta o elemento normativo jurídico, aquele que traz conceito próprio do direito[5]).
No entanto, bem se diga, caso o descumprimento se dê por meio de conduta típica em si mesma, como a ameaça (CP, art. 147) ou lesão corporal (CP, art. 129), o agente pode ser processado por estes crimes em específico.
Conclui-se que atualmente a revogação de medidas protetivas de urgência tem impacto tanto no aspecto cautelar quanto na composição típica do delito trazido pelo art. 24-A da lei n. 11.340/06, que só será aplicado caso se mantenham hígidos os requisitos de incidência da Lei Maria da Penha (art. 5º).
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Texto originalmente publicado na Conjur.
[1] STJ – RHC: 174015, Relator: ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Publicação: 13/02/2023.
[2] DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Penal Especial Comentada. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1.309.
[3] Idem, ibidem.
[4] Idem, p. 1.310.
[5] DOTTI, Rene Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 451.
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