DE QUANDO O PROMOTOR OU MAGISTRADO DESEJA CONSIGNAR AS PERGUNTAS NÃO RESPONDIDAS

Uma tática capciosa muito utilizada pela acusação ou pelo magistrado no processo penal é a consignação, em termo de interrogatório ou ata de audiência, das indagações feitas quando o acusado opta por permanecer calado.
A astúcia do jogador aí é manifesta, pois se a defesa se utiliza do direito constitucional de permanecer em silêncio (CF, art. 5ª, LXIII), é porque entende que falar naquele momento implicará em prejuízo processual, ao passo em que a acusação ou o magistrado, cientes disso, por meio de uma sutileza, tentam impedir os benefícios dessa tomada de decisão por parte do interrogado.
Daí que, insatisfeito com o silêncio, muitas vezes porque não se sentem confiantes o suficiente para pedir condenação com base no conjunto probatório que há, ausente o interrogatório, ou porque está predisposto a condenar (no caso do magistrado), tentam reverter o quadro consignando suas perguntas, algumas até com duplo sentido.
Todavia, o direito ao silêncio possui um consectário lógico, que é a ausência de prejudicialidade em razão do seu exercício, ou seja, exercido o direito, não pode o acusado ver-se prejudicado por ter permanecido calado.
Com a modificação trazida pela Lei nº 10.792/2003, restou firme a compreensão de que o direito ao silêncio é manifestação do exercício do contraditório e ampla defesa, e por isso mesmo, ao sentenciar, o juiz não pode valer-se deste silêncio para fundamentar sua decisão.
Nessa direção é o escólio de NUCCI[1]: “(…) como toda decisão deve ser fundamentada (art. 93, IX, CF), o silêncio jamais deve compor o contexto de argumentos do magistrado para sustentar a condenação do acusado. É preciso abstrair, por completo, o silêncio do réu, caso o exerça, porque o processo penal deve ter instrumentos suficientes para comprovar a culpa do acusado, sem a menor necessidade de se valer do próprio interessado para compor o quadro probatório da acusação.”
O Código de Processo Penal Militar, paradoxalmente, possui dispositivo que permite este proceder: “Art. 305. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao acusado que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa. Parágrafo único. Consignar-se-ão as perguntas que o acusado deixar de responder e as razões que invocar para não fazê-lo” (grifou-se).
LIMA, ao comentar este artigo, di-lo ser incompatível com a Constituição e os tratados internacionais de proteção aos direitos do acusado assinados pelo Brasil, pois equivaleria a produzir prova contra si mesmo. Estas mesmas ponderações podem ser aqui utilizadas. Assim se expressa, verbis:
“Os dispositivos do estatuto processual penal militar são claramente incompatíveis com o princípio do nemo tenetur se detegere. Se o acusado é titular do direito ao silêncio, do exercício desse direito não se pode extrair qualquer conseqüência que lhe seja desfavorável. Caso o acusado invoque seu direito de ficar em silêncio, não pode o magistrado ficar fazendo perguntas, uma após a outra, consignando as perguntas que o acusado deixar de responder como se o acusado estivesse cometendo uma irregularidade ao negar as respostas. Isso poderia servir como forma de pressionar o acusado. Além disso, como os registros das perguntas não respondidas e das razões arguidas pelo acusado não podem ser objeto de valoração pelo magistrado, deve ser suprimida dos autos qualquer menção a tais elementos, a fim de se evitar influência indevida sobre o convencimento do órgão julgador.”[2] (grifou-se)
Neste sentido é o interessante julgado do Superior Tribunal de Justiça, que declarou ser incompatível com a Constituição Federal todo o art. 305 do CPPM, embora tenha estendido o efeito apenas entre as partes do processo:
APELAÇÃO. LESÃO CORPORAL. REVOGAÇÃO DO ART. 305 DO CPPM EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DE 1988. EFEITO INTER PARTES. POSSIBILIDADE. PRESCRIÇÃO. OCORRÊNCIA CORRÉUS MENORES. A prescrição foi verificada quanto aos corréus menores à época do fato delituoso. Tendo em vista a incompatibilidade com os ditames constitucionais, declara-se a revogação do art. 305 do Código de Processo Penal Militar pela Constituição Federal, pois o silêncio do acusado, por ocasião do interrogatório, não pode, em nenhuma hipótese, ser interpretado em seu prejuízo, a teor do disposto no art. 5º, LXIII, da Lei Maior. Efeito inter partes. A doutrina e a jurisprudência entendem que há de ser considerada como causa interruptiva, para o cálculo da prescrição, não a data constante da Sentença em si, mas a de sua publicação. Mantida a condenação do réu maior por ocasião do crime, restando provada autoria e materialidade acerca do cometimento de lesões corporais. Concessão de sursis. PRELIMINARES ACOLHIDAS. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. (Superior Tribunal Militar STM; APL 2008.01.050993-3; Relª Minª Maria Elizabeth Guimarães Teixeira; Julg. 09/12/2009; DJSTM 16/12/2009) CPPM, art. 305 CF, art. 5 (grifou-se)
Percebe-se que, sobretudo quando o processo é parco de provas para condenar, a acusação ou o magistrado predisposto quer trazer uma evidência forte aos autos, que é uma possível confissão ou mesmo o nervosismo ao se expressar (algo que não consta no papel, mas que permanece no inconsciente do julgador). E diante da fragilidade probatória, pode erguer a confissão ou a ansiedade no momento da fala do acusado, como prova de sua vitória.
Mas a evidência, no imaginário punitivo, diz-se que dispensa a prova. Como reforça CUNHA MARTINS[3], ela é “simulacro de autorreferencialidade, pretensão de uma justificação centra em si mesmo”. Conclui e sentencia: “De alguma maneira, a evidência instaura um desamor do contraditório” (grifou-se).
Não é novidade, pois, que o acusador ou o juiz inclinado a condenar entende que a suposta evidência trazida pelas palavras do interrogado instaura no imaginário do intérprete um apelo à desnecessidade de ouvir alguma objeção. Afinal, se existem evidências retiradas das palavras do próprio acusado, qual sentido de se contraditar isso? Não foi ele participante do fato penal e conhecedor em suas minúcias?
Portanto, é necessário estar atento a esta prática audaciosa e perspicaz do acusador e de magistrados predispostos, a qual depõe contra os direitos e garantias do interrogado quanto ao exercício do direito ao silêncio, da não produção de prova contra si mesmo, e da não contaminação ideativa de quem irá julgar.
[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 13 ed. São Paulo: Editora Forense, 2016, p. 391.
[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 908.
[3] CUNHA MARTINS, Rui. O ponto cego do direito – The Brasilian Lessons. Ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 02.
Por: Jimmy Deyglisson, advogado criminalista, especialista em ciências penais e vice-presidente da ABRACRIMA/MA.
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