Dica de audiência: ausência de réu preso, carta precatória e oitiva comum.

No processo penal, como é sabido, não é somente a defesa técnica que ocupa lugar de destaque, senão também a autodefesa, por meio da qual o acusado poderá, ele mesmo, se defender das imputações que lhe são feitas, comparecendo a todos os atos instrutórios para que, assim, tenha condições de se insurgir contra a prova em toda sua completude.
É por isso que, mesmo preso, o réu, de regra, deve ser encaminhado para participar da audiência de instrução e julgamento. Todavia, alguns atos poderão ser praticados fora da comarca onde está recolhido, a exemplo de audiências que serão cumpridas por meio de cartas precatórias.Nestes casos, não é simples a presença do réu ergastulado, pois dada a normal dificuldade logística que se tem para o encaminhamento destes a outras comarcas (burocracia, parco número de servidores públicos nos presídios, etc), é comum que audiências desse tipo ocorram sem a participação pessoal do acusado. Em tese, portanto, poderia se arguir a nulidade do ato, ante a lesão ao princípio da autodefesa, que é desdobramento da ampla defesa. A jurisprudência de nossos tribunais, entrementes, tem adotado postura mais relativista e só tem declarado nulidade nos casos em que houver anterior requerimento para a presença do réu na audiência de instrução ocorrida via carta precatória. Veja-se julgado do STF:
AÇÃO PENAL. PROVA. OITIVA DE TESTEMUNHA. CARTA PRECATÓRIA. RÉU PRESO. REQUISIÇÃO NÃO SOLICITADA. AUSÊNCIA DE NULIDADE. JURISPRUDÊNCIA REAFIRMADA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO. APLICAÇÃO DO ART. 543-B, §3º, DO CPC. Não é nula a audiência de oitiva de testemunha realizada por carta precatória sem a presença do réu, se este, devidamente intimado da expedição, não requer o comparecimento. (STF, RE 602.543 QO-RG, Rel. Min. Cezar Peluso, Pleno, j. 19.11.2009, m.v.)
Portanto, para que ocorresse a nulidade aventada, necessário que, ou não houvesse sido intimado o réu da expedição da carta precatória, ou, havendo esta intimação, o réu requeresse o comparecimento ao ato e mesmo assim quedar-se inerte o judiciário.
Como dito no início do texto, é direito de gênese constitucional a presença do réu preso à audiência de instrução. Ainda assim, porém, qualquer alegação de nulidade nesse ponto deve passar pelo crivo do prejuízo, mesmo que se trate de audiência comum (que não seja via carta precatória).Nesse sentido, o STJ já declarou nulidade onde a Defensoria Pública requereu por duas vezes o encaminhamento do réu preso para a audiência de instrução, não tendo sido atendida pelo juízo, razão pela qual viu-se flagrante o cerceio de defesa. Em tese, poderia se dizer que a mera ausência, por si só, não constitui nulidade[1], todavia, ante a insistência do acusado no exercício de seu direito e a desídia do juízo em não atendê-lo, a mácula ao devido processo legal estava exposta.
PROCESSO PENAL. NULIDADE. OITIVA DE TESTEMUNHAS. AUSÊNCIA DO RÉU. ATUAÇÃO DA DEFESA EM SENTIDO CONTRÁRIO. DEFENSOR PÚBLICO. ÚNICO MOMENTO PARA O CONTATO COM O ACUSADO. CERCEAMENTO. RAZOABILIDADE. PRINCÍPIOS DO PREJUÍZO. COMPROMETIMENTO DO CONTRADITÓRIO. 1. O entendimento jurisprudencial na atualidade tem realizado importante consolidação de parâmetros de razoabilidade que dão logicidade ao sistema de anulação dos atos processuais e, a partir de uma ideia de instrumentalidade, tem afirmado que nada se reveste de um sentido em si mesmo e que os atos praticados pelas partes e pelo juiz possuem, a seu tempo e modo, uma razão de ser, a qual está ancorada em interesses e proposições realizadas a contento. 2. Por essa razão, a lógica do sistema de nulidades deve atuar no sentido de somente reconhecer a nulidade do vício processual quando não houver, na mesma proporção, a falha e a desídia deliberada dos sujeitos com interesse na causa. 3. No caso dos autos, aplicando-se os princípios do prejuízo e do interesse, verifica-se que a nulidade existiu, porque a própria defesa, realizada pela defensoria pública, advertiu ao juízo da necessidade da presença do réu no momento da oitiva testemunhal, não se tratando, no caso, de cumprimento de carta precatória. 4. Assim, verificado o prejuízo em face da omissão do Estado em conduzir o réu preso, por duas vezes, à audiência de instrução, há de ser reconhecida a nulidade. Habeas corpus concedido para anular o processo desde a audiência realizada em 16/6/2015. (STJ – Acórdão Hc 431332 / Rs, Relator(a): Min. Maria Thereza de Assis Moura, data de julgamento: 14/08/2018, data de publicação: 27/08/2018, 6ª Turma) (grifou-se)
Eis a dica, pois: se se deseja que o réu presencie a oitiva de testemunha, ocorrida via carta precatória, ou mesmo aquela ocorrida em audiência comum, deve o advogado estar atento para sempre requerer expressamente nos autos o encaminhamento do ergastulado ao local de realização do ato.
E se mesmo assim o juízo não atender ao requerimento, o advogado deve alegar a nulidade na primeira oportunidade em que puder fazê-lo, correndo o risco de ver declarada preclusa sua manifestação e a concordância tácita com a decisão que lhe negou o pedido.
[1] HABEAS CORPUS. AUTODEFESA. AUSÊNCIA DO RÉU PRESO NA OITIVA DE TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO POR MEIO DE CARTA PRECATÓRIA. NULIDADE RELATIVA. FALTA DE COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO. NULIDADE NÃO CONSTATADA. PRISÃO. EXCESSO DE PRAZO. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA. (…) 3. A falta de requisição de réu preso para a audiência de inquirição das testemunhas de acusação, realizada por meio de cartas precatórias, constitui nulidade relativa, que deve ser apontada em momento oportuno, acompanhada da comprovação de prejuízo efetivo para a parte, o que não ocorreu na hipótese. 4. Por não constatar a nulidade e considerar que o réu permaneceu preso ao longo de toda a instrução processual, bem como já haver sido julgada a apelação (pendente apenas o julgamento dos embargos declaratórios opostos), não há que se falar em excesso de prazo e nem, consequentemente, na necessidade de soltura do paciente. 5. Ordem denegada. (STJ – Acórdão Hc 333602 / Mt, Relator(a): Min. Rogerio Schietti Cruz, data de julgamento: 20/04/2017, data de publicação: 28/04/2017, 6ª Turma) (grifou-se)
Por: Jimmy Deyglisson é advogado criminalista, vice-presidente da ABRACRIM/MA e especialista em ciências penais.
Seja o primeiro a comentar!